sábado, 19 de fevereiro de 2011

Camelos Também Choram - Affonso Romano de Sant´Anna


CAMELOS TAMBÉM CHORAM    

Affonso Romano de Sant’Anna

Eu tinha lido que, lá na Índia, elefantes olhando o crepúsculo, às vezes, choram. 
Mas agora está aí esse filme “Camelos também choram”. 
A gente sabe que porcos e cabritos quando estão sendo mortos soltam gemidos e berros dilacerantes. 
Mas quem mata galinha no interior nunca relatou ter visto lágrimas nos olhos delas. 
Contudo,  esse filme feito sobre uma comunidade de pastores de ovelhas e camelos, lá na Mongólia, mostra que os camelos choram, mas choram não diante da morte, mas em certa circunstância que faria chorar qualquer ser humano. E na plateia, eu vi, os não camelos também choravam.

Para nós, tão afastados da natureza, olhando a dureza do asfalto e a indiferença dos muros e vitrinas; para nós que perdemos o diálogo com plantas e animais, e, por consequência, conosco mesmos, testemunhar com aquela bela família de mongóis o nascimento de um filhote de camelo e sua relação com a mãe é uma forma de reencontrar a nossa própria e destroçada humanidade.

É isto: eles vivem num deserto. Terra árida, pedregosa.  Eles, dentro daquelas casas redondas de lona e madeira, que podem ser montadas e desmontadas.  Lá fora um vento permanente ou o assombro do silêncio e da escuridão.  
E as ovelhas e carneiros ali em torno, pontuando a paisagem e sendo a fonte de vida dos humanos.

Sucede, então, que a rotina é quebrada com o parto difícil de um camelinho.  Por isto, a mãe camela o rejeita. 
O filho ali, branquinho, mal se sustentando sobre as pernas, querendo mamar e ela fugindo, dando patadas e indo acariciar outro filhote, enquanto o rejeitado geme e segue inutilmente a mãe na seca paisagem.

A família mongol e vizinhos tentam forçar a mãe camela a alimentar o filho. Em vão. Só há uma solução, diz alguém da família, mandar chamar o músico. Ao ouvir isto estremeci como se me preparasse para testemunhar um milagre. 
E o milagre começou musicalmente a acontecer.
Dois meninos montam agilmente seus camelos e vão a uma vila próxima chamar o músico. É uma vila pobre, mas já com coisas da modernidade, motos, televisão, e, na escola de música, dentro daquele deserto, jovens tocam instrumentos e dançam, como se a arte brotasse lindamente das pedras.

O professor de música, como se fosse um médico de aldeia chamado para uma emergência, viaja com seu instrumento de arco e cordas para tentar resolver a questão da rejeição materna. Chega. E ali no descampado, primeiro coloca o instrumento com uma bela fita azul sobre o dorso da mãe camela. A família mongol assiste à cena. 
Um vento suave começa a tanger as cordas do instrumento.  A natureza por si mesma harpeja sua harmônica sabedoria. 

A camela percebe. 
Todos os camelos percebem uma música reordenando suavemente os sentidos. Erguem a cabeça, aguçam os ouvidos, e esperam.

A seguir, o músico retoma seu instrumento e começa a tocá-lo, enquanto a dona da camela afaga o animal e canta. 
E enquanto cordas e voz soam, a mãe camela começa a acolher o filhote, empurrando-o docemente para suas tetas. 
E o filhote antes rejeitado e infeliz, vem e mama, mama, mama desesperadamente feliz.
E enquanto ele mama e a música continua, a câmara mostra em primeiro plano que lágrimas desbordam umas após outras dos olhos da mãe camela, dando sinais de que a natureza se reencontrou a si mesma, a rejeição foi superada, o afeto reuniu num  todo amoroso os apartados elementos. 

Nós, humanos, na plateia, olhamos aquilo estarrecidos. Maravilhados. Os mongóis na cena constatam apenas mais um exercício de sua milenar sabedoria. E nós que perdemos o contato com o micro e o macrocosmos ficamos bestificados com nossa ignorância de coisas tão simples e essenciais.

Bem que os antigos falavam da terapêutica musical. Casos de instrumentos que abrandavam a fúria, curavam a surdez, a hipocondria e saravam até a mania de perseguição. Bem que o pensamento místico hindu dizia que a vida se consubstancia no universo com o primeiro som audível - um ré bemol - e que a palavra só surgiria mais tarde. Bem que os pitagóricos, na Grécia, sustentavam que o universo era uma partitura musical, que o intervalo musical entre a Terra e a Lua era de um tom  e que o cosmos era regido pela harmonia das esferas.

Os primitivos na Mongólia sabem disto. Os camelos também. Mas nós, os pós-modernos cultivamos a rejeição, a ruptura e o ruído. Haja professor de música para consertar isto.

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O filme é de 2003. Em 8 anos muita coisa muda em nossa vida. A maneira de sentir o mundo pode mudar completamente.



Um comentário:

  1. Procurei por mto tempo essa crônica q mto me emocionou, ao ouví-la pela 1ª vez. Lindíssima!

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